Há cerca de sete anos, na reta final da minha formação em Produção Audiovisual na ULBRA, optei por fazer uma disciplina da faculdade de Jornalismo. Em determinado momento, a graphic novel Persépolis, de Marjani Satrapi, foi o centro de um dos trabalhos propostos pela professora Gabriela Almeida (uma das melhores professoras que já tive, vale dizer). O trabalho consistia em escrever uma resenha sobre a obra de Satrapi, algo que fiz com gosto tendo em vista sua qualidade excepcional. Agora que tenho o Caixa de Sucata para falar sobre qualquer assunto, decidi revisitar o texto para ver se eu poderia reaproveita-lo de alguma forma. Depois de modificar certos detalhes e atualizar o que eu havia escrito para ficar um pouco mais com a cara do Thomás de 2020, resolvi publicá-lo aqui.
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As primeiras imagens que
aparecem nos quadrinhos de Persépolis é a de um grupo de meninas iranianas
vestindo o véu preto comum na cultura do país. Nisso, a narradora, protagonista
e autora Marjane Satrapi diz que não podemos vê-la entre aquelas meninas, já que ela está sentada em um canto fora do quadro. Mas mesmo que pudéssemos vê-la, ainda assim seria
difícil identifica-la, já que todas as meninas parecem idênticas com o véu em
volta de suas cabeças. É uma imagem interessante por mostrar não
só um pouco dos costumes conservadores do país, mas também como isso parece tirar a
personalidade de seus habitantes, que passam por uma série de dificuldades em
meio a um caos social pontuado por guerras. Um desses habitantes é a própria
Marjane Satrapi, que conta no decorrer da graphic novel uma história
pessoal e de grande peso emocional.
Partindo de 1980, quando Satrapi
tinha 10 anos e a Revolução Islâmica estava dando seus primeiros passos, Persépolis
inicia sua história com um visual bastante simples e até mesmo infantil, o que
combina perfeitamente com a visão de mundo que a autora tinha na época (o modo
como ela descreve e ilustra certas passagens, por exemplo, mostra como ela
imaginava certas coisas quando criança). E é interessante notar como a
narrativa vai naturalmente amadurecendo junto com sua protagonista, o que
mostra a inteligência de Satrapi com relação ao modo como conta sua história
nos quadrinhos.
Em Persépolis, Marjane
Satrapi conta as dificuldades que ela e sua família passaram nos primeiros anos
de uma revolução que fez o país regredir 50 anos, como o pai da autora diz em
determinado momento. Uma parte dessas dificuldades ocorria muito por conta do
forte gênio da própria Satrapi, cujo modo de pensar e agir era totalmente
oposto ao das grandes autoridades do país e das escolas por onde passou, o que
frequentemente fazia ela ser expulsa das instituições. E tendo em vista a
rigidez do conservadorismo no Irã, é compreensível que os pais de Satrapi
tenham resolvido manda-la para Europa para que ela pudesse finalizar seus
estudos. Isso não deixa de apontar a sorte e o privilégio da autora, que teve
uma família com condições de ajudá-la a percorrer esse caminho, mas ainda é
triste ver como o contexto de seu país a fez precisar optar por tal saída (e a
imagem que traz o pai de Satrapi carregando nos braços a mãe dela desmaiada no
aeroporto é uma das mais marcantes e tristes da graphic novel).
A passagem de Satrapi pela Europa, aliás, é interessante pelo impacto que tem em sua vida. Na Áustria, a autora tem muito da liberdade que lhe faltava em sua terra-natal, tendo a oportunidade de fazer coisas que geralmente não poderia fazer, como seguir um estilo “punk” e ter vários relacionamentos. Claro que nem tudo são flores durante essa passagem. Mesmo vivenciando um ambiente mais livre, Satrapi ainda vive experiências que a jogam no fundo do poço. Experiências estas que não deixam de contribuir para o desenvolvimento da força da protagonista quando adulta.
O impacto de todas essas
vivências e ideias que moldam Marjani Satrapi pode ser visto no momento em que
ela reencontra velhas amigas no Irã. Quando Satrapi compartilha algumas de suas
histórias, o mal julgamento que essas amigas fazem dela não deixa de ser lógico
tendo em vista que elas passaram a vida toda em seu país de origem, se
adequando às regras que lhes foram impostas. Esse momento da história é um dos principais
exemplos do choque de costumes que vemos ao longo das páginas, mostrando como
esses aspectos da sociedade podem gerar visões diferentes e se tornar quase que parte do DNA das pessoas, sejam
eles opressivos ou não.
Persépolis é,
essencialmente, um relato tocante de alguém que passou por cima de muitos
obstáculos para formar sua vida sem abrir mão de quem é como ser humano. Uma graphic
novel essencial não só por sua temática sociopolítica, que aborda muito do
que há de complexo no mundo em que vivemos, mas também pela empatia que move
sua narrativa.
2 comentários:
Wow! Brilhante texto. Antes de ler este artigo eu só conhecia o nome da obra, mas tu me convenceu! E o artifício de casar a maturidade e o estilo da narrativa com a maturiadade e a idade da protagonista, ilustrando assim o crescimento dela, me parece incrível.
Eu morro de vontade de ler essa graphic nove esse texto só aumentou!
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